Cézanne vinha de família rica,
o pai era banqueiro, podia se dar ao luxo de se refugiar em sua casa de campo e
ficar ali pintando o que quer que seja. Não pintava para agradar a ninguém,
pintava para exteriorizar sua essência de percepção e meditação sobre o mundo a
sua volta.
Esse virar as costas à ideia concebida
da arte como embelezamento decorativo começou ali com Courbert que nãos se
interessava mais por ser um pintor para agradar a corte, a religião e as casas
finas da burguesia com suas pinturas de gênero como por exemplo as naturezas
mortas, as quais seguiam as convenções pictóricas da arte acadêmica.
Muito dentro deste espirito Cézanne
pintava para ele mesmo, sem ter a aflição de um Van Gogh, que sentia se sempre
um devedor de seu irmão Theo.
Isso fez toda a diferença no
produto final de uma época na Historia da Arte.
Sua falta de ambição foi
ambiciosa numa época ávida de mudanças
Podia sim pintar uma natureza
morta (gênero que estava sendo abandonado em sua época) Mas com ele deixou de
ser um a pintura de gênero, pois conforme ele mesmo dizia “uma maça não é mais
uma maçã depois de pintada” a pintura criava uma nova realidade, a realidade
plástica com valor em si, sem a referência da realidade existencial.
Saindo deste pensamento os
primórdios e a essência da Arte Moderna, as atitudes posteriores ficaram gravadas em forma de obras de arte, sendo
ele o gerador de toda mudança de percepção da geração seguinte, a qual
revolucionou a arte, ou seja, as Vanguardas do século XX. Vamos agora as
pinceladas
Os impressionistas já tinham
libertado a pincelada trabalhada, ou seja, aquela que os mestres do
renascimento tinham ensinado nas academias, o sfumatto, para a pincelada
alla prima, a qual era esgrimada, visceral. Cézanne compreendeu isto
muito bem, portanto, adicionou o fator reflexivo. Parece paradoxal isto né?
Como a pincelada alla prima que é espontânea, visceral.., pode ser
reflexiva?
Pois é. Cézanne fazia isto.
Segundo registros de relatos de seus amigos da época, diziam que ele passava as vezes horas focado no seu trabalho, portanto sem dar uma pincelada, a
qual saia depois de refletindo muito tempo. Mas quando tomava a decisão fazia de
maneira espontânea e certeira.
Paradoxal isso , não é?
Mas ai está a genialidade
deste mestre da pintura. Como se reunisse forças como um carateca para quebrar
um grande volume numa só pancada.
Um de seus amigos, o marchand
Ambroise Vollard fala desta sua introspecção diante sua tela e quando acontecia
uma pincelada era na sua maioria na posição diagonal.
Esse é o resultado final de
uma obra acabada de Cézanne. Vemos as pinceladas marcadas (alla prima) mas ao mesmo tempo parece que
foram demarcadas com exatidão no espaço tempo de sua tela, em um universo
concebido integralmente pela introspecção de Cézanne
A pincelada de Cézanne cria a
ideia do difuso, ou seja, aquilo que é, sem ser, aquilo que dá margem para
pensar além do que estamos vendo, abrindo uma janela para você tentar unir o
real ao imaginário, ou seja, a divagação...
Explicando melhor: você olha a
maçã pintada sobre uma mesa e quanto mais você olha aos poucos deixa
de ser uma maçã e passa a ser uma massa de cores esculpidas com pinceladas desencontradas.
Cada pedaço passa a ser um espetáculo com valor em si mesmo, esquecemos aos
poucos o entorno, a mesa, a toalha, a maçã... o lugar.
Intuitivo, casmurro... a frente de seu tempo. Graças a ele tivemos um genial Picasso com o caminho aberto por Cézanne, referindo-se a ele sempre como "o pai de todos nós"
A arte sempre
foi transgressora, poderia citar aqui inúmeros exemplos, ou seja, a Arte é ideologicamente progressista, pois nunca se
conforma com o status quo. Mesmo
nos longos períodos de predominância de determinados estilos ou estéticas, como
no período que prevaleceu as regras das Academias
europeias, asa quais ditavam as normas do fazer artístico assim como a maneira
de enxergar o mundo, foi havendo mutações de percepções.
A Arte moderna
que através de suas vanguardas do século XX, estabeleceu a ditadura da transgressão. Através de seus manifestos, futuristas, dadaísta, surrealistas
etc., ditavam uma nova forma de ver e do fazer artístico. Não aceitando mais entre os artistas qualquer regra
acadêmica.
Na virada do século XIX/XX os ares da modernidade
palpitavam nas mentes humanas, trazendo a tona essa exigência pelo novo, pela renovação dos costumes, como também da percepção humana. E as mentes de artistas e cientistas
inconformados com o que esta estabelecido é
que fazem a ponte para a realidade.
Se a arte e os
artistas fossem conservadores estaríamos ainda no estilo rupestre.
Se temos uma
Capela Sistina que passa a mensagem além do que a igreja queria na época e
ainda deixa mensagens subliminares precisou um artista inconformado com o clero
apesar de ser pago por ele
Se temos novas regras de proporção, perspectivas,
expressividade facial nas figuras e novas técnicas de pintura no renascimento é porque artistas como
Giotto, Van Eick, Leonardo e Michelangelo inconformados com a realidade ainda
com os resíduos bizantinos e o mundo gótico próximo ainda dos céus dourados,
mudaram totalmente o ideário imaginário da época com suas novas percepções e
experiencias.
Se temos uma
Guernica, uma LES DEMOISELLES D’AVIGNON de Picasso é porque este virou as
costas para tudo que já existia, não se perturbando de ser ridicularizado
Temos Kandinky
que virou as costas também as imagens reconhecidas pelo cérebro, trazendo o
novo ver e perceber do universo abstrato.
São tantos
exemplos que pudemos buscar na história da arte que mostram o quanto os
artistas com seus recados artísticos foram transgressores.
Uma pergunta
não quer calar:
Quando uma forma de
expressão artística se degenera e encerra um ciclo?
Resposta: Quando a transgressão quer se tornar
um status quo, quando se torna um establishment, quando passa a ser
permanentemente o novo normal, quando quer permanecer ditando, não inovando, quando
deixa de ser questionadora do passado recente. Pois ai deixa de trazer o novo
olhar e passa ser uma norma, um cânone.
O próprio
movimento da Arte moderna nos mostrou isso. Quando os artistas passaram a discriminar tudo que não fosse moderno, quando
passaram a perseguir e humilhar o que não estava dentro de seus cânones. Isso
mesmo, cânones, quando passa a ser uma receita, um ismo. Ai perde o sentido do
novo, da transgressão. Quando se torna norma a transgressão aí caímos no
previsível, no pensamento linear, e para transgredir o previsível? Eis a
questão!
Depois de 1945
os ares de cansaço das vanguardas começaram a ser sentido, ou seja, as normas
ditadas pelos artistas modernos foram caindo no lugar comum. Surgindo então daí
os movimentos Pós-Modernos.
Como seria difícil transgredir os transgressores! Que foram os artistas modernos até
então. Portanto, já estávamos férteis com um novo universo de imagens colocadas
aos olhos da humanidade por essa nova leva de artistas que permearam as
Vanguardas. Para tanto os ares do pós modernismos se apoiaram na transgressão
do vale tudo, nada a discriminar. Foi isso que os pos modernos fizeram.
Qualquer manifestação artística(?) seria válida, mesmo que ela estivesse eivada
pela arte clássica, desde que tivesse os traços do mundo contemporâneo.
Mas ai o vale
tudo descambou, perdendo-se de vista até mesmo a noção do artista transgressor.
Começando a permanecer o perfil do instantâneo, do “imediatico” (criando aqui
um neologismo) do nada....do vazio. Tivemos até uma
Bienal que assim se intitulou: Bienal do Vazio (28ª)
É isto, a arte
contemporânea caiu no vazio, e faz tempo, e o pior
que os assim se intitulam passaram a ser discriminadores do passado, tudo o que o pós modernismo não quis. Olham com ar
de superioridade qualquer manifestação que não seja do modismo que perpassam
pelas galeria e centros culturais “contemporâneos”. Pior
ainda serem fabricados da noite para o dia, artistas que são valorizados pelas
lavagens de dinheiro. Caindo por terra todo ideário da Arte, tornando
uma modinha, vazia, que se consome de um ano para o outro; sendo esquecida como
manifestação da mente humana. Logo desaparece, evapora, e nem é lembrado, salve
raras exceções, nesta sociedade altamente mediática e materialista. Nada contra
os bens materiais criados pelo espirito humano, mas apenas o vazio do esplendor
doa amor da matéria pela matéria.
Não vou
desprezar aqui manifestações pós modernas que foram muito geniais, mas devo
dizer que a porta foi aberta no período das
vanguardas mais especificamente no período dadaísta, quando a arte levou
ao extremo a ideia de transgressão, que chegaram ao extremo de proporem ate o
fim da arte e da cultura, pois revoltados e feridos pela violência do período
de guerra que a pouco tempo assolara a civilização europeia, a comunidade
artística questionavam então o valor que essa cultura humana tinha, pois apesar
de tanta evolução cultural, artística, bla, bla, bla, não tirou do ser humano o
ódio, a violência, não tornou-o mais solidário, menos primitivo nos
sentimentos.
O
questionamento levado as últimas consequências, levam a tal inconformidade propondo
então decretar o fim dessa cultura, que não serviu nem para tornar o ser humano
mais humano, reunidos pelo nome de dadaístas propuseram então decretar o fim da arte, o fim dessa cultura que não
serviu pra nada, daí os deboches e manifestações artísticas, (antiartísticas)
que tiveram como desfechos novas formas de expressão como as instalações, foto
montagem, colagens, intervenções e performances, criando obras de fundo
conceitual, as quais o mais importante é a ideia por detrás da imagem. Mudando
totalmente a concepção da contemplação do belo artístico. A arte já vinha se
refundando desde a passagem do século e chega ao seu ápice no dadaísmo.
A questão toda
que vemos em termos de criticidade histórica na dita Arte Contemporânea é a
despersonalização da arte, em sua maioria das vezes nem assinadas é , alguns
podem dizer sobre isso que a assinatura é vaidade. Valendo tudo não precisa nem
ser autoral, podendo ser gerida por uma agremiação, um grupo, pode ser um
projeto que se manda construir, ou anônima mesma, pode ser um evento que começa
e vai até se deteriorar e jogar no lixo. Portanto precisa de altos
financiamentos. O suporte de sustentação é infinito, a arte geográfica, pode
ser até no deserto ou na cratera de um vulcão. Vale tudo mesmo. Só não vale dizer
que isso não é mais como arte, que extrapolou toda ideia que temos de arte, que
são manifestações as quais poderíamos encontrar uma outra definição dentro da
cultura humana, porque além de não transgredir mais nada, por ficar na maioria
das vezes, no campo mediático, ou seja, de chamar a atenção e partir, podendo
até permanecer, mas tendo sua construção custado muitos milhões de dólares,
como na obra de Damien Hirst , refletindo a potência e poderio material. Muitas
vezes sendo financiada pela lavagem de dinheiro
Posto tudo
isso acima vamos agora entrar na Semana de Arte Moderna de 1922.
No primeiro dia da Semana de 1922 foi
declamado o poema “Pronominais” que de cara já propõe um rompante com os
Parnasianos que eram os guardiões da métrica impecável, da maneira culta de se
expressar. Propõe já uma transgressão à moda caipira.
“Não quero nenhuma palavra que
tenha sido descoberta por outrem. Todas as palavras foram descobertas pelos
outros. Quero a minha própria asneira, e vogais e consoantes também que lhe
correspondam. Se uma vibração mede sete centímetros, quero palavras que meçam
precisamente sete centímetros. As palavras do senhor Silva só medem dois
centímetros e meio.
Vemos, portanto, que esse
manifesto de 1916 chegou bem antes da Semana pelo grupo que se reuniu no Café
Voltaire em Zurique, ou seja 6 anos antes.
Assim como o Homem Amarelo do expressionismo
de Anita Malfatti foi movimento que teve seus primeiros precursores na passagem
do século, ou seja, 22 anos antes.
Assim como o cubismo de Ismael
Nery e Di Cavalcante deu-se início em 1905
Mas nada disso diminui nossos
artistas pois esses estilos depois de iniciados tiveram grande número de
artistas que continuaram a produzir obras por décadas.
A proposta de Oswald parece ter vingado,
portanto, de comer toda a arte estrangeira para pegar sua força como os índios
antropófagos faziam com os guerreiros capturados.
Na resenha de André Luís Borro
sobre o livro Tietê, Tejo, Sena: A obra de Paulo Prado, de Carlos Eduardo
Berriel “Com a Semana, a obra”, que cita: “há uma afirmação um tanto quanto
radical de Paulo Prado em relação à arte brasileira: “sempre nos aparece em
atraso de cinquenta a trinta anos todas as questões referentes à arte e à
literatura. Quando as novas fórmulas, já gastas e esgotadas, desaparecem, ou se
refugiam nos museus ou bibliotecas da velha Europa, surgem elas envelhecidas e
fora da moda nos nossos centros intelectuais” (do artigo “Brecheret”) do livro
“Tietê, Tejo, Sena”: A obra de Paulo Prado, de Carlos Eduardo Berriel
Portanto, na verdade esses artistas participantes
da Semana eram de origem de ricas famílias, da burguesia paulista. Na verdade,
já havia um saturamento da arte acadêmica da poesia parnasiana, corria se uma
onda que era mais interessante e ficava mais visível usar os rompantes
vanguardistas que sopravam do continente europeu. ... A própria burguesia já
não aguentava mais seu artificialismo intelectual.
Toda essa contraditoriedade
ideológica entre a política e a arte, mostra uma face oportunista do
brasileiro. Somos levados para onde sopram os ventos que dão status mas sem
consistências valorativas e formativas. Foi isso que aconteceu, portanto caiu
na mão de cabeças que tinham bastante profundidade e sensibilidade como Mario
de Andrade, Oswald e demais integrantes da semana, tornando bem mais fácil
buscar modelos prontos de transgressões pela arte nas Vanguardas Europeias.
É muito diferente o porquê da
criação de uma obra expressionista em sua origem dentro dos primórdios da
escola expressionista que surgiram de uma crise social e humana na passagem do
século, e de Anita Malfati que pintava à maneira expressionista. Era membro de
família burguesa, com formação em colégios internos e cursos no exterior
Muito diferente do nosso
Candinho, de nossa vizinha cidade de Brodowski que estudou ate o terceiro ano
escolar, e tudo tentou para conseguir o prêmio que o levaria a Europa para
estudar Arte. Neste ponto nos faz pensar num clamor que os cariocas sempre
fazem de que eles foram mais modernos que os paulistas, mas nesse episódio do prêmio
que Portinari recebeu prêmio do Salão Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro
nos mostra algo ao contrario, não estamos aqui falando da relevância de cada um
desses estados em termos de arte.
Na primeira tentativa de Candinho
em 1924, Portinari envia 9 retratos acadêmicos mais o “Baile na roça” de estilo
muito mais espontâneo, mais expressionista, com pinceladas a la primma. Para
sua surpresa foi aceito os nove retratos acadêmicos e o Baile na Roça foi
devolvido. Portinari ficou com isso entalado na garganta por um bom tempo. Em
1928 enviou o retrato de Olegario Mariano, seguindo os moldes academicistas,
então conseguiu o prêmio de viagem ao exterior. Sendo mantido pelo poeta Olegário
Mariano, Portinari escreve-lhe uma carta onde lamenta-se disso.
“Continuo cheio de saudades de
todos de nossa casa. Isso aqui é muito bom, muito gostoso, mas quem nasceu aí,
não pode viver muito tempo fora
O Brasil é mais bom, muito
mais. Depois, a gente se lembra de tudo e de todas as coisas desarranjadas do
Brasil, da terra da gente – das igrejas sem estilo, daquela gente boa que não
sabe ler… Aqui é tudo arrumadinho, as igrejas dos lugarejos mais bestas são de
estilo puro. O pessoal daqui sabe os direitos que tem. Oh! coisa sem sal…
Estou com uma saudade danada
de todos de nossa casa”.
E em outra carta diz:
Vou pintar aquela gente com aquela roupa e com aquela cor…
Portinari filho de família de imigrantes tinha a simplicidade de pessoa do interior. Seu traço expressionista com influencia do cubismo que estudou pelos museus de Paris quando de sua viagem prêmio. Faz um estilo moderno visceral baseado em sua personalidade e em suas origens simples.
Enfim o que continuamos a ver na arte neste nosso pais são manifestações hipócritas onde instituições culturais que colocam a arte contemporânea acimas de qualquer manifestação do passado, principalmente as modernista, portanto o nascedouro dessas novas vertentes contemporânea surgiram na arte moderna mais especificamente no período dadaísta, entretanto com variações que permeiam as outras escola das vanguardas.
Sentimos nesse emaranhado de proposições com facilidade o que quer ser apenas mediático, mas ainda se fazem nos nossos dias obras marcantes de conteúdo que atingem nosso amago, que permanecem dentro de nos modificando-nos o conceito de mundo como por exemplo a “Noite estrelada” de Van Gogh, Guernica de Picasso, “O grito” de Munch e quantas mais poderíamos citar, mas podemos buscar obras no período clássico também como uma Vênus de Milos, ou um Apolo de Belvedere, um David na Renascença. Enfim tantas obras que ficam entranhadas em nosso inconsciente coletivo tornando-se geradoras de concepções e imaginações estéticas dentro de nossa história de vida.
O que não podemos fazer é incorrer no erro que muitos dos contemporâneos passam a cometer querendo criar uma ditadura de obras conceituais mediáticas, a vida como lapso de tempo já vivenciamos cotidianamente em nossas atividades de trabalho e laser, precisamos do contemplativo, do menos conceitual, da paisagem imaginaria que entra e fica e nos deixa respirar.
Na carta de abertura de Graça Aranha tem todas a propostas que vingaram tanto nos artistas modernos como contemporâneos, na verdade vivemos ainda o moderno sob novas facetas
Estudando por muitos anos História da Arte faz com que a gente tire algumas conclusões sobre a Arte e os artistas, as quais ficam depois impressas pra sempre.
Em Ribeirão Preto tive o imenso privilegio de ter uma amizade próxima do artista e fotografo Francisco Amêndola. Nas nossas muitas conversas sobre arte, ele sempre com seu senso prático, dizia frases que ficavam como lições, para posteriormente criarem sentido dentro de um contexto maior de aprendizado com a vida.
Uma delas que sempre dizia era que: Arte é um segredo que é passado de mão em mão.
Ficava intrigado com isso. Pensando comigo que talvez ele estivesse sendo um pouco exclusivista. Pois Arte é de livre acesso como todos os bens culturais. Que segredo seria esse? O da fama do artista? O "pulo do gato" do artista? que seria passado de artista para artista com exclusividade?
Amêndola era um artista pragmático e tinha convicções por muitas coisas, as vezes era irônico, mordaz, mas sempre sincero, doa se quiser. No seu espirito notívago muitas vezes encontrávamos num balcão de algum barzinho e ficávamos trocando ideias até tarde da madrugada, ou seja, eu aprendendo mais que tudo.
Em meados do século XIX o pintor Gustave Courbet seguia as regras de representação da Academia francesa, portanto com sua visão pessoal, em dado momento transgrediu as propostas temáticas e o teor da mensagem que passaria através de suas telas. Na famosa obra “O Ateliê do Artista”, de 1855, cria o rompimento com a arte alegórica e religiosa do passado, fazendo nesta obra uma alegoria a sua própria vida, que demonstra explicitamente sua concepção egocêntrica da vida. Colocando a sua direita as pessoas amigas e importantes da sociedade e a esquerda os “outros”, em sua próprias palavras “Aqueles que cujas vidas poucos importam: o povo, os destituídos, os pobres, os ricos, os explorados, os exploradores, os que especulam com a morte." E ainda pelas suas próprias palavras seu quadro era uma “alegoria real” daí o nome dado ao momento estético que se seguira: o Realismo. Passando essa maneira de enxergar os porquês da arte para Manet e em seguida no desafio de pintar uma paisagem do real para Monet e os demais impressionistas que vieram depois, enredando todo esse passar de mão em mão até chegar nas vanguardas do século XX, cada mão que pegava colocava sua contribuição e passava pra frente com modificações
Assim como os artistas gregos do período de Péricles passaram para o futuro império macedônico de Alexandre, o Grande, a ideia e a técnica para atingir o belo através da sagrada proporção e em seguida para o império Romano, após a derrocada deste império, percorrendo assim um longo período da história antiga os cânones da beleza clássica, criando suas particularidades ao ser passado de mão em mão, ou seja, de cultura para cultura. Referendando aqui a ideia do Amêndola conforme colocado acima.
Após essas considerações vamos agora a “Tradicional” Semana de Portinari que acontece anualmente em nossa vizinha e querida cidade de Brodowski, para homenagear nosso grande artista Candido Portinari.
Essa festa das artes, que neste ano de 2021 chegou a sua 46ª edição, tendo, portanto, iniciado em 1976. Tornando uma feliz tradição cultural, graças ao esmerado empenho da direção e funcionários do Museu Casa de Portinari (não citando ninguém especificamente para não fazer diferença, pois sinto que todos são fieis ao grande projeto), o que transformou aquela que, era apenas uma casa visitada dos amantes da arte, num Museu maravilhoso de alto nível de conservação e qualificação internacional.
Achei em meus arquivos aqui, minha primeira participação se deu em 1996. Mas bem antes, em1984, já tive contato com o Museu no projeto “O Artista da “Quinzena” criado por Pedro Manuel Gismondi, fazendo uma pequena exposição lá. Desde então a Semana teve pequenas alterações no modelo original, mas nada significante dentro do proposito da Semana de Portinari.
Lembro-me até hoje minhas primeiras tentativas de ser pintor. Meu cunhado José Cerri que tinha habilidades em marcenaria, vendo meu interesse pela arte, me fez umas telas de saco de estopa. E na primeira que fez em seguida já fui pintando uma cópia de uma obra de Portinari. Eu acho que intuitivamente o contato com o estilo dele, o cubismo, a geometrização das figuras, foi o que me pegou. Muita vontade tinha de pintar, mas “non have money”, tentava várias coisas, nos suportes mais variados que surgissem a minha disposição, com qualquer tinta também que achasse pela frente. Estou falando aqui da faixa de idade que tinha que era entre 10 e 12 anos.
Eis que me aparece uma saída. Meu irmão mais velho, José Rui me levou para conhecer o Leopoldo Lima. Que otimo! Material de custo insignificante para realizar obras, caixotes de pinus onde vinham as “manzanas argentinas” para vender na feira, um ferro quente para queimar a madeira, e mais adiante conseguindo um formão para entalhar e um pirógrafo para modelar a fogo as figura. Pegava minha bicicleta, e lá ia até a rua André Rebouças no bairro Ipiranga ver o Leopoldo trabalhar. Passava horas ali com ele vendo talhar sua obra. Olhar sempre carinhoso e sorridente comigo. Só de ver aprendia.
La com ele
aprendi que “Fazer arte é se fazer feliz”, primeira grande lição.
A medida que fui
crescendo e conseguindo comprar tintas passei inicialmente a pintar minhas
pirogravuras e depois passei para suportes de compensados de madeira e logo em
seguida para a tela.
Nessa passagem encontrei obras de Siqueiros, muralista mexicano, em um dos seus murais "Cuauhtemoc contra o Mito", ele põe duas esculturas pintadas ao pé do mural, ou seja, duas pedras esculpidas conforme as figuras abaixo.
Fiz então uma ponte, pensando nestas figuras, entre a pirogravura e a pintura (não restando nenhuma imagem da minha obra obra) e mais alguns outros como “O corpo bêbado e a garrafa vazia” que ainda possuo uma foto (abaixo a direita).
Mas
logo logo achei meu caminho pelo cubismo e expressionismo, observando
Portinari, Marc Chagall e os muralistas mexicanos. Mais adiante fui achar
Picasso e com isso, pelos meus meios intuitivos, encontrei minha forma de expressão artística.
A partir de
1995 passei a compartilhar minha experiência artística montando cursos no
ateliê. Ou seja, passando para as mãos dos meus alunos o que sabia.
Aí que entra então
a Semana de Portinari, que, quando acontecia, chamava meus alunos em peso para
compartilhar dessa festa ao grande artista brasileiro. Na pintura mural eu tinha que
funcionar como um maestro. Pensava num tema pictórico e subdividia os espaços e
as funções para execução de cada um.
Sendo
convidado há vários anos para participar, acabei criando muitos amigos na
cidade e com todo o pessoal do Museu. A valorização da Arte e dos artistas
estabelecida a tantos anos pelo projeto de fomento da ACAM - Associação
Cultural de Apoio ao Museu Casa de Portinari, me faz sentir orgulhoso e
homenageado indiretamente pela maneira que é proposta a Semana. Onde o mais
importante é a participação aberta e de coração a todos que quiserem prestigiar
a Arte. Não há politicalhia, ou concepções teóricas demagógicas que privilegia
esta ou aquela maneira de fazer arte. Deixando de lado os vícios teóricos e
críticos. Apresentando-se como uma Festa das Arte, simples assim e
ponto.
A resistência ao longo de muitos anos da direção
do Museu para não mexer nesse modelo, torna a Semana cada vez mais um espaço seguro
de manifestações artísticas de alto astral dos participantes, os quais assim
como eu não gostam dessa areia movediça de egos, onde mais
importante e ficar na disputa, do que comparecer com o espirito festivo e aberto
que a arte proporciona, se assim quiser.
Para fazer a
ligação de tudo que foi dito acima com a frase do Amêndola, “Arte é um segredo
que é passado de mão em mão”, podemos dizer em relação a isto que o que o Museu e
sua administração faz é construir pontes para os novos artistas para ali buscarem num
mesmo lugar sua expressão artística, pela convivência, interatividade e ainda a
valorização da Arte pela Arte. Podendo assim se situarem sem obstruções críticas e
desdéns intelecto-ideológicos. Sendo também um verdadeiro fomento para a criação de
novos admiradores, amantes da cultura e possíveis novos artistas. Passando da
memória de Portinari que esta impressa em cada tábua do assoalho e em cada parede agora milimetricamente preservada nesta grandiosa “capela da arte” Museu Casa de Portinari,
para nossas futuras gerações .
Com certeza
para Candinho, pela sua personalidade, os dois lados do quadro de Courbet seria
importante pra ele, pois tinha o olhar carinhoso tanto para com seus amigos
próximos como para os trabalhadores da terra, excluídos e retirantes que
incansavelmente retratou com a expressão de um grande lavrador da Arte.
Sendo
assim, o segredo (do Amêndola) era não ter segredo, só estender a mão. Como também não ter
lado de preferência, todo ser humano tem seu valor.
PINTURA MURAL 46ª SEMANA DE PORTINARI 2021 - BRODOWSKI
A obra fotografada na reportagem acima “Infância”,
não sobrou também nenhuma foto dela a não ser a da reportagem. Retrato uma
criança com um carrinho de brinquedo atado a um cordão na mão, que era
brinquedo recorrente de minha infância, e uma bola de futebol ao lado. A criança
olha para uma casa que esta a sua frente.
A
casa lembra um rosto onde a boca é uma porta fechada e as janelas os olhos. Dessa porta sai uma
estrada que passa ao lado da criança. Ao lado da casa tem uma outra casa com
uma cerca de arame onde se pendura uma nota musical. Por trás destas casas em primeiro plano, tem prédios, uma lua, morros no horizonte, uma estrada que sai da casa, que seria a
continuação do caminho da frente. Uma pipa no céu e ainda um poste de luz.
Esta obra nos traz reflexão sobre a vida. Talvez a
criança seja eu mesmo, que esta diante ao momento de encarar a vida adulta e
deixar os brinquedos para trás.
Reforçando talvez uma ideia sobre mim mesmo, me
colocando no lugar da criança, olho pra vida que vem pela frente mas não encaro
ir pelo caminho que leva a porta, que esta trancada e que talvez precise de muito
esforço para abri-la. Tem a segunda opção da casa com a nota musical pendurada na cerca, que
talvez seja a opção pela arte, talvez a cerca possa ser
de maneira figurada o aprendizado artístico.
A criança parece paralisada e olha perplexa para o
que vê pela frente. Momento de decidir pra onde ir. Há também a opção, se
conseguir transpor a casa “cara” tem um caminho que leva aos montes e a lua,
simbolizando a poesia e a elevação do espirito.
Mas fica uma pergunta: O que teria dentro desta casa trancada? O difícil aprendizado que nos dá o viver para ser igual a todos?
Enfim cria-se bastante indagações e reflexões nesta
obra. Coloque a tua interpretação abaixo
Não quero aqui tecer consideraçõos históricas da estética abstrata,
e sim apenas registrar observações vivenciadas ao longo de meu trabalho artístico
em relação a essa estética Artistica.
Fiquei inspirado em escrever este texto após colocar uma obra
em redes sociais, um painel que estava por acabare pedi ali na minha postagem pra que
decidissem o lado que deveria ficar a obra. Colocando duas fotos para optarem.
Posição 1
Posição 2
O que é o ABSTRATO?
Vamos ver o que diz os dicionários:
O que não é concreto; Que existe só na imaginação; Que inexiste;
etc.
As imagens dessa obra não tem formas referenciais da realidade, nem nenhuma
figuração explicita, encontra se quadrados, círculos, triângulos, polígonos irregulares
etc, além de outas formas orgânicas que são indefinidas.
Na execução do painel segui minha percepção de harmonia e
contraste através de sentimentos de imagens que sugerem ao espirito meu estado
do momento. Ora serenas, ora nostálgicas, ora agitadas. Sendo, na verdade, sempre
uma fuga da realidade ficar imprimindo numa tela seu momento interior,
conversando consigo mesmo, dando satisfações de meu viver para mim mesmo escrevendo
abstratamente na tela
Tem a hora também da contemplação do todo, ou seja:
O que esta fora do contexto?
O que esta gritando?
O que precisa gritar?
O que não esta claro (adjetivo)?
O que esta claro demais (substantivo)?
Qual é o sentido? Sentindo em mim o todo (da obra)
Condiz com meu sentido (sentimento) momento?
Levando então a algumas alterações em alguma parte para
mudar o sentido, sentimento. Fazendo isso várias vezes durante a elaboração da
obra
Um exercício de meditação abstrata com elementos puros dos sentidos ...sentimento.
Elaborando fora elaboro por dentro
Quando fiz a pergunta sobre o lado que gostariam que ficasse
fiquei surpreso com os sentidos e sentimentos que cada um expressou, pois o
abstrato, (sem sentido), é percebido com vários sentimentos. Vamos dar uma olhada
em algumas expressões:
Miguel me chamou mais atenção a 1,
por conta dos traços vermelhos no canto direito superior. Quem sou eu pra
opinar, mas é sempre bom o olhar de quem não entende nada de obras de arte,
assim como eu, mas se encanta e tem sua atenção despertada por um detalhe que
muitos não observam
Quando coloquei na horizontal e
vislumbrei vi vestígios da uma Civilização Antiga que a partir da foto foto
coloriu.
Que coisa estranha.
Parabéns esta magnífico!
Notem, pelos comentários, os sentido e sentimento produzidos!
Não tive professores de arte, fui autodidata a vida toda no exercício
pictórico, mas tive amizades e conversas fantásticas com grandes mestres da
arte de nossa cidade como, Pedro Manuel, Amêndola, Canova, Vaccarini e Leopoldo
Lima. Nessas conversas extrai deles tudo que me tornou fazedor de Arte.
Lembro me do Amêndola falando, "Vira de cabeça pra baixo", "Olha
esse pedaço isolado do resto"...etc. Com o tempo fui percebendo que uma obra abstrata
é forte e atraente aos olhos quando ao colocá-la dos quatro lados os olhos
gostam em todas posições.
Fora isso fui um estudante voraz de estética e História da Arte, apesar de tudo isto concluímos que, a arte esta fora quando esta dentro,
que sentir faz sentido e sentido faz sentimento. São coisas básicas que está na
vida de todos, pois mora na alma que vive dentro de cada um. Basta se permitir.
Não precisa estudar nada, alias os estudos só referendam isto.
As observações dos amigos que se manifestaram demostram
isso conforme listados acima.
É um trabalho abstrato, isto é, não quer contar nada, não
quer mostrar nenhum objeto real ou ser da natureza, ou lugar, ou paisagem
Mas revela sentidos diferentes, conta histórias do interior
de cada um, cria pontes de percepção com a existência (sentido). Não quer contar nenhum
acontecimento, mas faz acontecer aos olhos que encaminham ao coração e à mente, ai
criando sentido, sentimento,,, existência.
O lado que a maioria apontou foi a posição 1. Vou fortalecer alguns elementos plásticos apontados pela maioria do lado direito acima e finito.
Esse período de pandemia me vem muitas vezes na cabeça a figura de um finado tio, irmão da minha mãe, que morou por muitos anos na casa dela. Tio Lívio.
Sempre me lembro dele pela maneira de ser e viver diferente de tudo que vi desde criança. Nunca encontrei nada semelhante até hoje.
Tinha uma característica que me atraia muito, gostar de livros. Acho que peguei essa doença dele. Bibliomaníaco. Realmente é uma mania, uma tara, se pudesse traria todos livros pra dentro de casa. Mas tenho que sempre me conter.
Quando morreu deixou 5 estantes de livros, contendo em torno de 5.000 mil livros.
Mas o que tenho a dizer sobre ele é sobre seu modus vivendis, muito estranho! Mas acho que estaria correta suas atitudes nessa pandemia.
Vou descrever alguns traços para fazer-me entender melhor:
Mantinha as mãos e os braços sempre distante do corpo, era estranho o jeito dele andar com os braços tensos afastados. Como se tivesse nojo de se tocar. E tinha!
Não só de si, de todos. Nunca vi dar a mão praa ninguém ao cumprimentar. Se negava ao estenderem a mão para ele. Teve até uma passagem que ficou famosa contada por um jornalista, não me lembro o nome dele, do jornal “O Diário”, onde trabalhava como revisor, nos dias posteriores ao seu falecimento. Contou esse jornalista que certa vez o Governador Laudo Natel visitou a redação do jornal e estendendo a mão em cumprimento a cada um dos presentes na redação, ao chegar diante ao Sr Lívio com a mão estendida este lhe negou. Fato que deixou a todos perplexos.
Lembro-me que uma vez o visitei na redação, não me lembro por qual motivo e fiquei perplexo de ver como trabalhava. Se apoiava com os cotovelos em uma mesa alta e os artigos entravam e saiam dessa mesa após sua leitura. Não se sentava porque haveria contato e em consequência, em sua cabeça, contágio, com alguns vírus que alojou em sua psique. Onde se apoiava tinha grandes pelotas de calosidade criadas pelo apoio do braço diariamente, uma em cada braço.
E tem mais
Recordo-me também que ao chegar de madrugada na casa de minha mãe ia direto para o banheiro, onde passava por 45 minutos lavando o braço da ponta dos dedos até ao ombro, passando água e sabão por várias vezes, como se tentasse tirar qualquer coisa ruim que ali tivesse pousado. Vi muitas vezes essa situação. Esse era o banho dele.
Ao se deitar extraordinariamente diferente do costume das pessoas, não recolhia as pernas sobre a cama. Elas ficavam pra fora, estiradas para um lado. Até hoje me pergunto como aguentava dormir assim.
Toda essa estranheza relatada aqui o fiz não pra relatar essa situação em si, mas as ideias que talvez suspeito estarem por trás desse comportamento, baseado em alguns livros que encontramos em sua vasta biblioteca, por exemplo coleção completa de Plinio Salgado, tudo sobre Hitler e muitas outras leituras com esse naipe ideológico. Seu comportamento era de misantropia. Quando minhas sobrinhas chegavam na casa da vó, era o maior terror pra ele. Xingava sem parar, excomungava, mandava embora. Não gostava de criança de maneira nenhuma. As netas se divertiam com isso.
Esses dias atrás em conversa com um grande amigo sobre as situações políticas que estamos vivendo, ficamos procurando razões por ter pessoas que gostam do lado mau, de ver o próximo servilmente, que adoram o poder, a superioridade, o materialismo a qualquer preço. E muitos desses batem a mão no peito como verdadeiros cristão, não só evangélicos, muitos que ajoelham nas igrejas católicas também. Ficamos analisando as origens italianas que estão enraizadas em nossa genética. Na nossa querida Itália são muito forte esses traços dos lados extremos, conservador e progressistas. Extremismos de qualquer lado nunca deu certo.
Por tabela os meus avós, pais de minha mãe, que vieram na imigração italiana pós guerra tinham esses traços contraditórios. Minha vó do lado conservador, católica de carteirinha, não saia da igreja, nervosa até! E meu avô, pedreiro de valor, fazia fachadas de casas com balaustradas decorativas, anjo em cima de janelas, trabalhador, progressista, contra a igreja, meio ateu, mas segundo minha mãe muto amoroso.
O que tem a ver o tio Lívio, a pandemia, a família italiana então?
Tem tudo a ver comigo
O lado conservador de minha avó sobrepôs ao outro lado. Minha mãe se diferia das irmãs pois era mais humilde, caridosa e muito criticada por ter casada com um “pobretão”.
A história de amor da minha mãe com meu pai é muito linda, ficou registrada num diário de amor escrito a dois, o qual fiz cópia, encadernei e guardo com muito carinho. Está lá nos registros o problema dessa visão discriminatória: meu pai trabalhava na “Forca Publica”, Policia Militar de hoje. Um esgar pra família conservadora antiga. “Só casa com a Olga se der baixa da farda”. Não tendo outra opção assim o fez. E isso foi muito ruim pois meu pai teve que encarar qualquer trabalho que surgisse pra poder sustentar sua família e isso inclui ir para o sertão desbravar fazenda de latifundiários.
Os locais de nascimentos dos filhos são diferentes, Miguelópolis, Santa Rita, Ituverava, Ribeirão Preto. Daí dá pra ver a vida itinerante que tiveram.
Os irmãos, homens, sempre gostaram muito de discutir política nas festas da família, mas nenhum era dono da verdade, um ouvia o outro, convencia ou era convencido. Eram discussões calorosas, as vezes em altos brados, a moda italiana. Mas jamais brigas, ficar de mau, nada disso. Gostava muito disso, esperava ansioso esses dias, principalmente o Natal quando estávamos todos. Quem olhasse de fora imaginava uma briga, mas era puro sangue inflamado sem maldade ou agressão.
Hoje em dia fica-se de mal por causa de fanatismo político. Pois é, pra que? O corona não tem olho nem preferência ideológica. Surfa na primeira onda da saliva desprotegida para a outra praia próxima a menos de 1 metro. Somos todos iguais perante o vírus.
Com certeza meu tio hoje em dia dificilmente pegaria a covid-19 pois já treinava a anos a distância social e a praia dele era sempre fechada. Pouco falava muito se prevenia. Preferia ficar quietinho em sua epidemia de livros, curtindo sua ideologia em cima da prateleira da estante. E ficar de mal desde sempre com o mundo, como fazia, não precisava então discutir.
Os antepassados da família italiana quase todos já se foram, alguns irmãos também. As discussões, hoje em dia, acabam mal. Então vamos enfiar a cara nos livros, nas telas e refletir um pouco na ideologia que mais deu certo para humanidade iniciada a 2.000 anos atrás, e que funciona em qualquer epidemia a qual foi revisitada pelo “poverello” de Assis no século XII, deixando-nos um poema perfeito dessa ideologia. Numa de suas estrofes diz a máxima: “Onde houver ódio que eu leve o amor”. Difícil, não é? pensar nisso nesses tempos de gente colérica...
Dois minutos e quarenta segundos, exatamente isso! O tempo de meu ovo ficar no ponto exato depois que começa a ferver de manhã quando ponho na leiterinha para ferver. Demorei alguns dias pra chegar a esse tempo, depois que me meti a curtir um ovo quente pela manhã. Tentativa e erro. Sincronizando e marcando ate chegar ao ideal. O ideal para meu gosto, mas cada um tem seu gosto, seu tempo, seu tipo... seu porquê.
Parece uma coisa boba começar falar sobre uma coisa tão corriqueira. Mas com essa experiência boba me remeti a tantas situações que vivi automaticamente, que realizei, que aperfeiçoei e não me dava conta que nesses tipos de situações, estão toda essência da evolução, da cultura, da ciência, da filosofia... etc., humana. Ou seja, todo o processo civilizatório.
Os dois minutos e quarenta segundos que tenho que ficar esperando o ovo cozer no ponto que eu quero, fico com a mente na condição de expectativa, nos últimos vinte segundos olhando o cronometro e ao mesmo tempo absorta durante um pouco além dos 2 minutos. Esse poco tempo absorto a cabeça vai longe. Mas começa no perto, ali mesmo, no ateliê. O que temos para o dia? Muitas vezes uma obra nova ou uma nova obra, uma restauração encrencada na mesa, uma arrumação diferente, etc. Aliás o ateliê é uma fábrica de desafios.
Quando tem uma obra nova no cavalete venho já de dentro ruminando saídas para continuar de onde parei, mas muitas vezes tudo muda quando confronto depois de muitas horas fora do contato visual do trabalho iniciado. Minha ideia preconcebida do dia anterior de onde parei, muda ao contemplar assim que avisto novamente. Encontro ângulos que não tinha percebido, formas, matizes, histórias, desejos, sonhos esquecidos, etc., que a combinações guardadas pela noite me vislumbram no retorno do dia.
Quando está em plano uma nova obra nos minutos do ovo fico imaginando o que poderia fazer de novo. Já fiz tantas coisas... montar novas composições de figuras de cores? explorar a plasticidade de novas formas atadas a nuances de cores, de sombras, de luz? Ou tentar contar algum sentimento presente, alguma preocupação? ou uma história feliz?
Dois minutos, as vezes e dez segundos, as vezes e trinta segundos e as vezes quando vejo, fiquei tão absorto nas minhas traquinas mentais que o cronometro já passou dos dois minutos e quarenta segundos. Ai corro e desligo rápido, retiro com uma colher o ovo e ponho debaixo da água da torneira para esfriar. Mas dependendo do dia, a mente não esfria do assunto que tratava para o dia no ateliê.
Quando tem uma encomenda com tema escolhido, fico conjugando varias imagens na mente imaginando-as elaboradas na tela. Arquitetando o tema com cores e formas.
Quando está em pauta uma restauração encrencada... ufa! As vezes tenho que resolver a invenção de uma ferramenta auxiliar ou toda uma engenharia de manejo para solucionar situações delicadas. Aqueles dois minutos e pouco ficam ruminando uma resposta, que ali naquele tempo não vem. Mas quando a pergunta fica bem formulada para o inconsciente na hora que estou de frente com o problema vem o estalo, a eureca.
Incrível, mas tudo tem a ver com a observação do tempo certo do ovo.
Em todas as situações a mente criativa ou laborativa tem seu tempo de deixar no ponto o que você pretende, o que você busca. Como também todo o processo de busca de uma solução para cada problema. A depuração até chegar num modo de resolver da melhor maneira.
A vida é uma construção de experimentos e experiências. As experiências acumuladas te dão competência para solução de novos problemas. Muitas vezes a gente quer que abra a porta, mas não pesquisamos as palavras mágicas. Essa é a razão da mente bárbara querer vencer na força. A inteligência vence qualquer tipo de força bruta. Aliás a história da civilização esta permeada de situações de tentativas e erros, mas sempre tem alguém pra receber um eureca ou uma maçã caindo na cabeça. A própria palavra civilização é auto explicativa disso. Somos civilizados na medida que criamos os rudimentos de convivência e bem estar comum. E isso foi um longo processo de adaptação ao meio, aliás é um processo sem tempo pra acabar. Quanto mais civilizados mais queremos ser, mesmo que ainda os bárbaros tentem romper com violência esse processo. A civilização sempre vence.
A obra pronta muitas vezes é linda ou causa estranheza, mas por trás de qualquer sentimento que produza em quem a contemple pronta, existe a laboração interna e externa, de tal maneira que as duas se acertem no tempo do cozimento da obra. E esse tempo é o momento do artista, que não sabe viver sem ter no seu tempo a matéria viva que ao cozinhar em seu âmago, alimente seu viver.
Quem nasceu primeiro? O ovo ou o pintinho? eis a questão. O ser ou o vir a ser? Old questions...
Sou quase um acumulador compulsivo. A diferença é que, o que guardo no meu ateliê quase sempre dou sentido posteriormente, ou em forma de arte ou algum outro bem para o ateliê, ou ainda uma finalidade sentimental. Não fica nada inútil. Comecei no período da pandemia me enfiar no ateliê por muitas horas a fio, apesar das reclamações de dentro da casa. Quando ia ver já eram meia noite, 1::00 h... acabou o dia, 14 a 15 horas de atividades em alguns dias. Tem que ir dormir mesmo? Pra quê? Tenho tantas tarefas ainda! Dentre elas além da produção de obras que deve ser regular para poder atender aos pedidos, ainda cuidar de alguns engastalhos como restaurações de obras encomendadas, etc. Uma delas chegou em terrível estado de conservação, num estado repugnante. Com mofo, todo o craquelado escamado, virou pó ao enrolarem para transportar. Dava nojo de pegar na mão. Quando trouxeram disse que ia dar uma avaliada, mas ao ver a situação quis devolver, pois o trabalho era imenso, para mais de oito meses. Enfim não tive como sair pela insistência da pessoa que me procurou e acabei pegando o trabalho. Depois desse acho que posso ressuscitar até obras do Titanic pensei comigo, ficou como um desafio. Ao mesmo tempo iniciei uma reorganização no monte de quinquilharia que guardo em função do fazer artístico. Sou aficionado em deixar as coisas de maneira muito prática para serem usadas, penso e repenso várias vezes a posição de guardar e a facilidade para pegar quando precisar etc. Quadro de ferramentas, pequenas máquinas de uso em madeira, separação dos pincei, das tintas, as variedades de tintas para várias situações, materiais para limpeza e conservação nos restauros, pedaços de madeiras e MDFs os quais de vez em quando faço meus próprios moveis do ateliê. A lista é grande. Mas sempre tenho que buscar materiais nas prateleiras. E odeio ficar procurando. Procurar desconcentra, faz perder tempo, fico nervoso e bravo ufa... Grande parte dos serviços movimenta muitos materias e ferramentas. E se deixar bagunçar por pressa no que está fazendo, vira um reboliço sem fim. Um trabalho intenso, criação de novas obras, restauração, organização... Num desses momentos de organização encontrei uma caixa com vários retalhos de lâminas de madeiras de várias qualidades, imbuia, cedro, cerejeira, marfim, mogno, etc. que usava quando dava uma oficina de marchetaria em Pradópolis. Ao colocá-la em cima da bancada de ferramentas para dar uma organizada e ver o que deveria jogar fora ou guardar olhei para o lado esquerdo, onde guardo os estiletes e outros instrumentos de corte, então avistei o antigo canivete de meu pai, a espera de “um dia...”. Explico melhor: esse canivete veio pra mim na caixinha de relíquias que meu pai guardava os documentos dele, uma caixinha de lata de bolacha toda decorada dos anos 60. É praxe vir pra mim as sobras documentais das pessoas que se vão na minha família. Tenho muitas cartas de meu pai de minha mãe, dos meus irmãos que já foram, tios, etc. pois mantenho-os conservados e bem cuidados. Sempre gostei disso pois acho que é uma maneira ade cultuar meus antepassados. Deixo-os a disposição de quem quiser ver da família. Sinto a presença deles na minha prole, filhos, netas, pois se não fossem os antepassados não existiria o presente e nem o futuro, por isso é necessário cultuar os que já foram, de certa maneira me sinto amparado fazendo isso. Como se garantisse meu futuro, que seja o genético. Voltando ao canivete, lá estava ele me olhando, fazendo eu lembrar da minha promessa que “um dia” iria restaurá-lo dando novo cabo, pois não tinha mais a empunhadura, ficando tudo só na estrutura metálica. As lâminas de madeira na minha mão, o canivete... quando ia falar “um dia...” como sempre falei quando olhava pra ele, (e foram vários “um dia...”) nesse momento veio de dentro: O DIA É HOJE! acabou o "um dia"! Mãos a obra: recortei as lâminas, separei os rebites e a cola para pregar uma sobre a outra. Perdi 2 fechos emendados por estarem secas demais e lâminas muito finas. A noite estava acabando, tomar banho ainda e dormir, mas não desisti. “Você não sai daqui enquanto não acabar” veio uma ordem interna. E assim aconteceu.
Depois envernizado e pronto deixei-o secando e fui terminar meu dia. No dia seguinte busquei-o no ateliê e deixei próximo de mim onde ia. Em cima da bancada, em cima da escrivaninha, do lado do cavalete de pintura... Como se fosse um talismã de energias e vontade de viver. Era um elo vivo com meu antepassado, com a memória de meu pai. Um fetiche de amor a família!
De fato a vida tem alguns momentos caprichosos assim