Comecei no período da pandemia me enfiar no ateliê por muitas horas a fio, apesar das reclamações de dentro da casa. Quando ia ver já eram meia noite, 1::00 h... acabou o dia, 14 a 15 horas de atividades em alguns dias. Tem que ir dormir mesmo? Pra quê? Tenho tantas tarefas ainda! Dentre elas além da produção de obras que deve ser regular para poder atender aos pedidos, ainda cuidar de alguns engastalhos como restaurações de obras encomendadas, etc. Uma delas chegou em terrível estado de conservação, num estado repugnante. Com mofo, todo o craquelado escamado, virou pó ao enrolarem para transportar. Dava nojo de pegar na mão. Quando trouxeram disse que ia dar uma avaliada, mas ao ver a situação quis devolver, pois o trabalho era imenso, para mais de oito meses. Enfim não tive como sair pela insistência da pessoa que me procurou e acabei pegando o trabalho. Depois desse acho que posso ressuscitar até obras do Titanic pensei comigo, ficou como um desafio.
Ao mesmo tempo iniciei uma reorganização no monte de quinquilharia que guardo em função do fazer artístico. Sou aficionado em deixar as coisas de maneira muito prática para serem usadas, penso e repenso várias vezes a posição de guardar e a facilidade para pegar quando precisar etc. Quadro de ferramentas, pequenas máquinas de uso em madeira, separação dos pincei, das tintas, as variedades de tintas para várias situações, materiais para limpeza e conservação nos restauros, pedaços de madeiras e MDFs os quais de vez em quando faço meus próprios moveis do ateliê. A lista é grande. Mas sempre tenho que buscar materiais nas prateleiras. E odeio ficar procurando. Procurar desconcentra, faz perder tempo, fico nervoso e bravo ufa... Grande parte dos serviços movimenta muitos materias e ferramentas. E se deixar bagunçar por pressa no que está fazendo, vira um reboliço sem fim.
Um trabalho intenso, criação de novas obras, restauração, organização...
Num desses momentos de organização encontrei uma caixa com vários retalhos de lâminas de madeiras de várias qualidades, imbuia, cedro, cerejeira, marfim, mogno, etc. que usava quando dava uma oficina de marchetaria em Pradópolis. Ao colocá-la em cima da bancada de ferramentas para dar uma organizada e ver o que deveria jogar fora ou guardar olhei para o lado esquerdo, onde guardo os estiletes e outros instrumentos de corte, então avistei o antigo canivete de meu pai, a espera de “um dia...”. Explico melhor: esse canivete veio pra mim na caixinha de relíquias que meu pai guardava os documentos dele, uma caixinha de lata de bolacha toda decorada dos anos 60. É praxe vir pra mim as sobras documentais das pessoas que se vão na minha família. Tenho muitas cartas de meu pai de minha mãe, dos meus irmãos que já foram, tios, etc. pois mantenho-os conservados e bem cuidados. Sempre gostei disso pois acho que é uma maneira ade cultuar meus antepassados. Deixo-os a disposição de quem quiser ver da família. Sinto a presença deles na minha prole, filhos, netas, pois se não fossem os antepassados não existiria o presente e nem o futuro, por isso é necessário cultuar os que já foram, de certa maneira me sinto amparado fazendo isso. Como se garantisse meu futuro, que seja o genético.
Voltando ao canivete, lá estava ele me olhando, fazendo eu lembrar da minha promessa que “um dia” iria restaurá-lo dando novo cabo, pois não tinha mais a empunhadura, ficando tudo só na estrutura metálica. As lâminas de madeira na minha mão, o canivete... quando ia falar “um dia...” como sempre falei quando olhava pra ele, (e foram vários “um dia...”) nesse momento veio de dentro: O DIA É HOJE! acabou o "um dia"!
Mãos a obra: recortei as lâminas, separei os rebites e a cola para pregar uma sobre a outra. Perdi 2 fechos emendados por estarem secas demais e lâminas muito finas. A noite estava acabando, tomar banho ainda e dormir, mas não desisti. “Você não sai daqui enquanto não acabar” veio uma ordem interna. E assim aconteceu.
Depois envernizado e pronto deixei-o secando e fui terminar meu dia. No dia seguinte busquei-o no ateliê e deixei próximo de mim onde ia. Em cima da bancada, em cima da escrivaninha, do lado do cavalete de pintura... Como se fosse um talismã de energias e vontade de viver. Era um elo vivo com meu antepassado, com a memória de meu pai. Um fetiche de amor a família!
De fato a vida tem alguns momentos caprichosos assim
C’est la pandémie...Miguel Angelo
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