sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

TIO

 

Esse período de pandemia me vem muitas vezes na cabeça a figura de um finado tio, irmão da minha mãe, que morou por muitos anos na casa dela. Tio Lívio.
Sempre me lembro dele pela maneira de ser e viver diferente de tudo que vi desde criança. Nunca encontrei nada semelhante até hoje. 
Tinha uma característica que me atraia muito, gostar de livros. Acho que peguei essa doença dele. Bibliomaníaco. Realmente é uma mania, uma tara, se pudesse traria todos livros pra dentro de casa. Mas tenho que sempre me conter. 
Quando morreu deixou 5 estantes de livros, contendo em torno de 5.000 mil livros.
Mas o que tenho a dizer sobre ele é sobre seu modus vivendis, muito estranho! Mas acho que estaria correta suas atitudes nessa pandemia.  
Vou descrever alguns traços para fazer-me entender melhor:
Mantinha as mãos e os braços sempre distante do corpo, era estranho o jeito dele andar com os braços tensos afastados. Como se tivesse nojo de se tocar. E tinha!
Não só de si, de todos. Nunca vi dar a mão praa ninguém ao cumprimentar. Se negava ao estenderem a mão para ele. Teve até uma passagem que ficou famosa contada por um jornalista, não me lembro o nome dele, do jornal “O Diário”, onde trabalhava como revisor, nos dias posteriores ao seu falecimento. Contou esse jornalista que certa vez o Governador Laudo Natel visitou a redação do jornal e estendendo a mão em cumprimento a cada um dos presentes na redação, ao chegar diante ao Sr Lívio com a mão estendida este lhe negou. Fato que deixou a todos perplexos. 
Lembro-me que uma vez o visitei na redação, não me lembro por qual motivo e fiquei perplexo de ver como trabalhava. Se apoiava com os cotovelos em uma mesa alta e os artigos entravam e saiam dessa mesa após sua leitura. Não se sentava porque haveria contato e em consequência, em sua cabeça, contágio, com alguns vírus que alojou em sua psique. Onde se apoiava tinha grandes pelotas de calosidade criadas pelo apoio do braço diariamente, uma em cada braço.
E tem mais
Recordo-me também que ao chegar de madrugada na casa de minha mãe ia direto para o banheiro, onde passava por 45 minutos lavando o braço da ponta dos dedos até ao ombro, passando água e sabão por várias vezes, como se tentasse tirar qualquer coisa ruim que ali tivesse pousado. Vi muitas vezes essa situação. Esse era o banho dele. 
Ao se deitar extraordinariamente diferente do costume das pessoas, não recolhia as pernas sobre a cama. Elas ficavam pra fora, estiradas para um lado. Até hoje me pergunto como aguentava dormir assim. 
Toda essa estranheza relatada aqui o fiz não pra relatar essa situação em si, mas as ideias que talvez suspeito estarem por trás desse comportamento, baseado em alguns livros que encontramos em sua vasta biblioteca, por exemplo coleção completa de Plinio Salgado, tudo sobre Hitler e muitas outras leituras com esse naipe ideológico. Seu comportamento era de misantropia. Quando minhas sobrinhas chegavam na casa da vó, era o maior terror pra ele. Xingava sem parar, excomungava, mandava embora. Não gostava de criança de maneira nenhuma. As netas se divertiam com isso. 
Esses dias atrás em conversa com um grande amigo sobre as situações políticas que estamos vivendo, ficamos procurando razões por ter pessoas que gostam do lado mau, de ver o próximo servilmente, que adoram o poder, a superioridade, o materialismo a qualquer preço. E muitos desses batem a mão no peito como verdadeiros cristão, não só evangélicos, muitos que ajoelham nas igrejas católicas também. Ficamos analisando as origens italianas que estão enraizadas em nossa genética. Na nossa querida Itália são muito forte esses traços dos lados extremos, conservador e progressistas. Extremismos de qualquer lado nunca deu certo. 
Por tabela os meus avós, pais de minha mãe, que vieram na imigração italiana pós guerra tinham esses traços contraditórios. Minha vó do lado conservador, católica de carteirinha, não saia da igreja, nervosa até! E meu avô, pedreiro de valor, fazia fachadas de casas com balaustradas decorativas, anjo em cima de janelas, trabalhador, progressista, contra a igreja, meio ateu, mas segundo minha mãe muto amoroso. 
O que tem a ver o tio Lívio, a pandemia, a família italiana então?
Tem tudo a ver comigo
O lado conservador de minha avó sobrepôs ao outro lado. Minha mãe se diferia das irmãs pois era mais humilde, caridosa e muito criticada por ter casada com um “pobretão”. 
A história de amor da minha mãe com meu pai é muito linda, ficou registrada num diário de amor escrito a dois, o qual fiz cópia, encadernei e guardo com muito carinho. Está lá nos registros o problema dessa visão discriminatória: meu pai trabalhava na “Forca Publica”, Policia Militar de hoje. Um esgar pra família conservadora antiga. “Só casa com a Olga se der baixa da farda”. Não tendo outra opção assim o fez. E isso foi muito ruim pois meu pai teve que encarar qualquer trabalho que surgisse pra poder sustentar sua família e isso inclui ir para o sertão desbravar fazenda de latifundiários.
Os locais de nascimentos dos filhos são diferentes, Miguelópolis, Santa Rita, Ituverava, Ribeirão Preto. Daí dá pra ver a vida itinerante que tiveram.  
Os irmãos, homens, sempre gostaram muito de discutir política nas festas da família, mas nenhum era dono da verdade, um ouvia o outro, convencia ou era convencido. Eram discussões calorosas, as vezes em altos brados, a moda italiana. Mas jamais brigas, ficar de mau, nada disso. Gostava muito disso, esperava ansioso esses dias, principalmente o Natal quando estávamos todos. Quem olhasse de fora imaginava uma briga, mas era puro sangue inflamado sem maldade ou agressão.
Hoje em dia fica-se de mal por causa de fanatismo político. Pois é, pra que? O corona não tem olho nem preferência ideológica. Surfa na primeira onda da saliva desprotegida para a outra praia próxima a menos de 1 metro. Somos todos iguais perante o vírus. 
Com certeza meu tio hoje em dia dificilmente pegaria a covid-19 pois já treinava a anos a distância social e a praia dele era sempre fechada. Pouco falava muito se prevenia. Preferia ficar quietinho em sua epidemia de livros, curtindo sua ideologia em cima da prateleira da estante. E ficar de mal desde sempre com o mundo, como fazia, não precisava então discutir.
Os antepassados da família italiana quase todos já se foram, alguns irmãos também. As discussões, hoje em dia, acabam mal. Então vamos enfiar a cara nos livros, nas telas e refletir um pouco na  ideologia que mais deu certo para humanidade iniciada a 2.000 anos atrás, e que funciona em qualquer epidemia a qual foi revisitada pelo “poverello” de Assis no século  XII, deixando-nos um poema perfeito dessa ideologia. Numa de suas estrofes diz a máxima: “Onde houver ódio que eu leve o amor”. Difícil, não é? pensar nisso nesses tempos de gente colérica...

MIGUEL AI/IGELO 

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